"Ora, lei ruim tem de ser mudada, não atropelada. Também no
jogo institucional, árbitro protagonista indica inadequação ou
insuficiência dos jogadores. Entre os descontentamentos,
o que rende mais desgastes ao STF tem origem em instâncias
da própria Justiça, do Ministério Público e da Polícia Federal.
Isso não acontece por acaso"
Há a máxima do futebol segundo a qual árbitro bom aparece pouco. Depende. Se os jogadores ignorarem a bola e mirarem na canela dos adversários, então ele se torna protagonista da partida. Por que um embate com leis degenera em pancadaria? As razões são as mais diversas. Em que cultura se formaram os jogadores? Qual é o seu caráter? Eles respeitam as regras do jogo? Há reações duras e estridentes àquilo que alguns chamam "excesso de protagonismo" do Supremo Tribunal Federal (STF), tornado árbitro do jogo político. Os ministros são acusados de tolher prerrogativas do Executivo, de fazer leis em lugar do Legislativo, de imiscuir-se nas ações das polícias e de atropelar instâncias da própria Justiça.
A reportagem que precede este artigo retrata bem esse ambiente. O STF nada mais faz do que reagir à hipertrofia do Executivo, que tende a usar a popularidade do mandatário de turno para atropelar a lei; à hipotrofia do Legislativo, acanhado pelo fisiologismo e pelo vício da subordinação; e ao açodamento de juízes, promotores e policiais, que entendem que o excesso do que chamam "garantismo" da legislação impede a "verdadeira justiça". Ora, lei ruim tem de ser mudada, não atropelada. Também no jogo institucional, árbitro protagonista indica inadequação ou insuficiência dos jogadores. Entre os descontentamentos, o que rende mais desgastes ao STF tem origem em instâncias da própria Justiça, do Ministério Público e da Polícia Federal. Isso não acontece por acaso. Será preciso fazer um pouquinho de história das idéias para chegar ao núcleo do problema.
"O direito deve ser achado na lei, não na rua", afirmou, no dia 6 passado, o presidente do STF, Gilmar Mendes. Muitos distinguiram na frase apenas a oposição entre o vulgo e as lentes, entre o clamor público e o rigor judicioso. Era mais do que isso. Tenho cá comigo o Livro Vermelho, que é cinza, cujo conteúdo, se aplicado, representaria a desconstituição legal do Brasil. Trata-se de um conjunto de textos, de 1988, escritos pelos partidários do "Direito Achado na Rua", uma corrente do pensamento jurídico brasileiro. É a ela que Mendes alude em sua fala. O pai intelectual do estrupício é o advogado Roberto Lyra Filho (1926-1986), fundador do que ele proclamava ser a "Nova Escola Jurídica Brasileira" – nada menos...
Mas que diabos quer a tal corrente, mais viva do que nunca e muito influente (Tarso Genro e até um ministro do Supremo já escreveram textos para o grupo)? Sua missão é se opor ao "legalismo", que estaria vincado pelas desigualdades de classe. Esse combate se dá com o exercício do "verdadeiro direito", só encontrado nos movimentos sociais, na "rua" – daí o nome-fantasia escolhido por seus partidários... ou sicários. Um juiz, um promotor ou um policial identificados com esse pensamento mandam às favas o texto legal – "Lei é coisa só para país civilizado", dizem – e optam por atalhos em nome dos "humilhados da terra". Lyra Filho era amigo de jovens. Gostava de se cercar de efebos do pensamento; a grei de noviços intelectualmente imberbes o idolatrava, ativíssimos entusiastas das idéias daquele Sócrates da luta de classes. O culto produziu valores e militantes, que, mais de vinte anos depois, ocupam não as ruas, mas os aparelhos de estado.
Lyra Filho foi professor da Universidade de Brasília e é, hoje, um espectro a rondar o curso de direito da UnB, um verdadeiro celeiro do "jus-rueirismo", e de toda parte. Em 1982, ele escreveu o livrinho O que É Direito, da já mitológica coleção da Editora Brasiliense. Eram tempos em que só um esquerdista tinha autoridade intelectual para nos revelar o "é" da coisa – e, vocês sabem, ainda hoje não é muito diferente. Lembro que coube a Marilena Chaui, por exemplo, explicar O que É Ideologia. Ela fez uma glosa pobre do livro A Ideologia Alemã, de Karl Marx (1818-1883), e sentenciou que "ideologia" é coisa da direita. A esquerda, claro, tem só valores e verdades... Os dois livros continuam em catálogo. Lyra Filho é bibliografia obrigatória em muitos cursos de direito. Falar mal do seu pensamento é como chutar a santa...
Partidário assumido das idéias do teórico comunista Antonio Gramsci (1891-1937), Lyra Filho incitava seus sequazes a desmoralizar a tradição jurídica e seus doutores, que ele chamava "catedr’áulicos". Num texto-bula dirigido aos jovens, diz como devem se comportar seus partidários: "A pressão libertadora não se faz apenas de fora para dentro, mas, inclusive, de dentro para fora, isto é, ocupando todo espaço que se abre na rede institucional do statu quo e estabelecendo o mínimo viável para maximizá-lo evolutivamente". Mais adiante, ele exalta aqueles que exploram "as contradições e porosidades do sistema legal, recorrendo à ILEGALIDADE NÃO-SELVAGEM [as maiúsculas são minhas], com lucidez e comedimento, isto é, em condições de pressão dosada, que força a absorção de pontos positivos pelo sistema dominante". Quem é íntimo da teoria política sabe: é puro Gramsci, autor de uma estratégia de tomada do poder, não de uma filosofia do direito.
Haveria, então, uma espécie de "golpe jurídico" em curso, tramado pelo "jus-rueirismo"? Para alguns é agradável supor que estou aqui a exercitar teorias conspiratórias um tanto lunáticas. Não, não há – não da forma como convencionalmente se entende um golpe. O que temos é a atuação evidente de juízes, promotores e policiais, partidários do Direito Achado na Rua, incrustados na "rede institucional do statu quo", como queria Lyra Filho, para, "com lucidez e comedimento", praticar a "ilegalidade não-selvagem" em nome da "igualdade de classes".
O Supremo percebeu que era hora de reagir a essa investida e bateu o martelo: "O direito deve ser achado na lei, não na rua". Aplausos, então, para o árbitro!
Fonte: Revista Veja
jogo institucional, árbitro protagonista indica inadequação ou
insuficiência dos jogadores. Entre os descontentamentos,
o que rende mais desgastes ao STF tem origem em instâncias
da própria Justiça, do Ministério Público e da Polícia Federal.
Isso não acontece por acaso"
Há a máxima do futebol segundo a qual árbitro bom aparece pouco. Depende. Se os jogadores ignorarem a bola e mirarem na canela dos adversários, então ele se torna protagonista da partida. Por que um embate com leis degenera em pancadaria? As razões são as mais diversas. Em que cultura se formaram os jogadores? Qual é o seu caráter? Eles respeitam as regras do jogo? Há reações duras e estridentes àquilo que alguns chamam "excesso de protagonismo" do Supremo Tribunal Federal (STF), tornado árbitro do jogo político. Os ministros são acusados de tolher prerrogativas do Executivo, de fazer leis em lugar do Legislativo, de imiscuir-se nas ações das polícias e de atropelar instâncias da própria Justiça.
A reportagem que precede este artigo retrata bem esse ambiente. O STF nada mais faz do que reagir à hipertrofia do Executivo, que tende a usar a popularidade do mandatário de turno para atropelar a lei; à hipotrofia do Legislativo, acanhado pelo fisiologismo e pelo vício da subordinação; e ao açodamento de juízes, promotores e policiais, que entendem que o excesso do que chamam "garantismo" da legislação impede a "verdadeira justiça". Ora, lei ruim tem de ser mudada, não atropelada. Também no jogo institucional, árbitro protagonista indica inadequação ou insuficiência dos jogadores. Entre os descontentamentos, o que rende mais desgastes ao STF tem origem em instâncias da própria Justiça, do Ministério Público e da Polícia Federal. Isso não acontece por acaso. Será preciso fazer um pouquinho de história das idéias para chegar ao núcleo do problema.
"O direito deve ser achado na lei, não na rua", afirmou, no dia 6 passado, o presidente do STF, Gilmar Mendes. Muitos distinguiram na frase apenas a oposição entre o vulgo e as lentes, entre o clamor público e o rigor judicioso. Era mais do que isso. Tenho cá comigo o Livro Vermelho, que é cinza, cujo conteúdo, se aplicado, representaria a desconstituição legal do Brasil. Trata-se de um conjunto de textos, de 1988, escritos pelos partidários do "Direito Achado na Rua", uma corrente do pensamento jurídico brasileiro. É a ela que Mendes alude em sua fala. O pai intelectual do estrupício é o advogado Roberto Lyra Filho (1926-1986), fundador do que ele proclamava ser a "Nova Escola Jurídica Brasileira" – nada menos...
Mas que diabos quer a tal corrente, mais viva do que nunca e muito influente (Tarso Genro e até um ministro do Supremo já escreveram textos para o grupo)? Sua missão é se opor ao "legalismo", que estaria vincado pelas desigualdades de classe. Esse combate se dá com o exercício do "verdadeiro direito", só encontrado nos movimentos sociais, na "rua" – daí o nome-fantasia escolhido por seus partidários... ou sicários. Um juiz, um promotor ou um policial identificados com esse pensamento mandam às favas o texto legal – "Lei é coisa só para país civilizado", dizem – e optam por atalhos em nome dos "humilhados da terra". Lyra Filho era amigo de jovens. Gostava de se cercar de efebos do pensamento; a grei de noviços intelectualmente imberbes o idolatrava, ativíssimos entusiastas das idéias daquele Sócrates da luta de classes. O culto produziu valores e militantes, que, mais de vinte anos depois, ocupam não as ruas, mas os aparelhos de estado.
Lyra Filho foi professor da Universidade de Brasília e é, hoje, um espectro a rondar o curso de direito da UnB, um verdadeiro celeiro do "jus-rueirismo", e de toda parte. Em 1982, ele escreveu o livrinho O que É Direito, da já mitológica coleção da Editora Brasiliense. Eram tempos em que só um esquerdista tinha autoridade intelectual para nos revelar o "é" da coisa – e, vocês sabem, ainda hoje não é muito diferente. Lembro que coube a Marilena Chaui, por exemplo, explicar O que É Ideologia. Ela fez uma glosa pobre do livro A Ideologia Alemã, de Karl Marx (1818-1883), e sentenciou que "ideologia" é coisa da direita. A esquerda, claro, tem só valores e verdades... Os dois livros continuam em catálogo. Lyra Filho é bibliografia obrigatória em muitos cursos de direito. Falar mal do seu pensamento é como chutar a santa...
Partidário assumido das idéias do teórico comunista Antonio Gramsci (1891-1937), Lyra Filho incitava seus sequazes a desmoralizar a tradição jurídica e seus doutores, que ele chamava "catedr’áulicos". Num texto-bula dirigido aos jovens, diz como devem se comportar seus partidários: "A pressão libertadora não se faz apenas de fora para dentro, mas, inclusive, de dentro para fora, isto é, ocupando todo espaço que se abre na rede institucional do statu quo e estabelecendo o mínimo viável para maximizá-lo evolutivamente". Mais adiante, ele exalta aqueles que exploram "as contradições e porosidades do sistema legal, recorrendo à ILEGALIDADE NÃO-SELVAGEM [as maiúsculas são minhas], com lucidez e comedimento, isto é, em condições de pressão dosada, que força a absorção de pontos positivos pelo sistema dominante". Quem é íntimo da teoria política sabe: é puro Gramsci, autor de uma estratégia de tomada do poder, não de uma filosofia do direito.
Haveria, então, uma espécie de "golpe jurídico" em curso, tramado pelo "jus-rueirismo"? Para alguns é agradável supor que estou aqui a exercitar teorias conspiratórias um tanto lunáticas. Não, não há – não da forma como convencionalmente se entende um golpe. O que temos é a atuação evidente de juízes, promotores e policiais, partidários do Direito Achado na Rua, incrustados na "rede institucional do statu quo", como queria Lyra Filho, para, "com lucidez e comedimento", praticar a "ilegalidade não-selvagem" em nome da "igualdade de classes".
O Supremo percebeu que era hora de reagir a essa investida e bateu o martelo: "O direito deve ser achado na lei, não na rua". Aplausos, então, para o árbitro!
Fonte: Revista Veja
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